A vida nas fazendas primitivas do sertão pernambucano


Jornal de Arcoverde - Novembro/Dezembro de 2011 - pág.3


A vida nas fazendas primitivas do sertão pernambucano

Pedro Salviano Filho


No final de novembro de 2011 estive passeando em Arcoverde, Pedra, Buíque e Sertânia, visitando parentes e amigos, revendo a nossa região. Os pratos típicos, entre outras coisas, me trouxeram recordações da infância ali vivida e também a curiosidade sobre a origem de usos e costumes de hoje, que tento esclarecer a seguir.
Procurar entender a cultura, a tradição etc. nos remete ao início do desbravamento e ocupação da terra. As primitivas fazendas dos colonizadores das caatingas do nordeste tiveram evolução diferente. Algumas, pela localização e ou pela influência exercida pelos seus proprietários, evoluíram para povoações, vilas e cidades. Para entender melhor os nossos costumes se faz necessário uma revisão do que foi vivido pelos nossos antepassados.
No livro “Moxotó Brabo” (Rio, 1979, pág. 27), o memorialista (nascido e criado em Alagoa de Baixo = Sertânia) Ulysses Lins de Albuquerque revela com maestria como era a vida naquelas velhas fazendas da nossa região: “Nelas mourejavam, segregados do mundo, aqueles homens corajosos que se aventuravam à conquista dos sertões desertos, enfrentando os gentios e as feras! A caça abundante - queixadas, veados, tatus, emas etc. - atraíam os que se dispunham a acompanhar o pioneiro que ali se fixara com o título a garantir-lhe a posse de longos tratos de terra virgem. Mais tarde, escravos de Angola e de Guiné eram trazidos do litoral, e casebres de moradores e modestas senzalas iam dando àquelas estâncias primitivas uns ares de aldeia. Os cantos nostálgicos dos filhos da África e as toadas dos caboclos, ao repinicar da viola, espalhavam pelos ares uma mensagem de melodia que despertava as almas para a emoção e o enternecimento. Não raro, o som de uma zabumba percutia longe... e, em breve os mulatos e caboclos estavam a tocar pífanos de taboca, organizando, assim, o rústico conjunto musical com que alegravam o ambiente. O coco e o samba apareciam nas senzalas, e as quadrilhas e polcas já eram dançadas na casa-grande.
Os negros cultivavam as roças e na casa de farinha depositavam a mandioca para ser triturada no caititu e transformada no precioso alimento - tão caluniado pelos nutrólogos citadinos - que ainda hoje constitui a base alimentar daquela gente sadia e forte - a farinha de mandioca.
Um moinho de pedra era instrumento indispensável em todas as fazendas, para quebrar o milho e com ele preparar-se o xerém. Um pilão de madeira funcionava diariamente: duas pessoas, cada uma com a sua "mão de pilão", pisavam alternadamente, o café torrado (a rubiácea apareceu ali um pouco antes do meado do século XIX), ou desolhavam o milho para o mungunzá.
O sabão da terra era feito com sebo, cinza de juazeiro e potássio. Fabricava-se também o azeite da mamona, para iluminação, antes do aparecimento do querosene. Alguns fazendeiros mandavam ensinar aos próprios filhos e escravos mais habilidosos certos ofícios; e por eles eram feitos chinelos, alpercatas, roupas de couro para vaqueiro, arreios, etc., bem como mesas, tamboretes, e até carretões de boi.
Colheres de pau, gamelas, caçuás, grajaus - tudo os negros engendravam, para uso próprio e dos senhores, e às vezes por encomenda dos vizinhos.
Aquela faina intensa, entregava-se o conglomerado humano, diariamente, enquanto a dona da casa dirigia a feitura de queijos - de coalho e de fogo - nas épocas de inverno; ou, matando o tempo, na almofada, a fazer rendas, e também instruindo na arte as filhas menores e as das escravas.
O fazendeiro, proprietário abastado, era reverenciado pelos vizinhos que o procuravam a trato de negócios ou recorrendo aos seus bons ofícios para resolver qualquer caso em que se sentissem embaraçados.
E, se possuía inimigos - uma intriga contraída, que às vezes degenerava em luta de famílias - ou receando um assalto de cangaceiros (um José Feitosa, que operava nos sertões do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco; um Joaquim Frazão e outros), mandava abrir torneiras nas paredes das casas, e mantinha a sua guarda bem armada e municiada, ante qualquer eventualidade...
Mas, quais os recursos médicos de que dispunha aquela gente, ilhada naqueles confins? Médico, farmácia, só lá pelo Recife (nos primeiros tempos) e mais tarde em Rio Formoso (porto para onde convergiam os tropeiros do interior), Goiana, e, depois, Santo Antão (Vitória), Palmares, Bezerros, Caruaru, por onde ia chegando o trem de ferro...
Recorria-se à medicina caseira, às garrafadas que os curandeiros preparavam com a mistura de várias ervas, tidas como medicinais.
Na fazenda Jacu, do meu bisavô materno Antônio de Siqueira Barbosa, dizia minha avó (sua filha) que aparecia o surjão, sempre que era chamado para fazer sangrias com lanceta, pois dizia-se: "todo mal provém do sangue"...
Já meu pai, que até 1897 residiu na fazenda Pantaleão, tinha a sua caixinha de remédios homeopáticos, cheia de pequenos vidros de acônito, beladona e outros produtos da Farmácia Homeopática do Dr. Sabino Pinho (médico), do Recife. Quando alguém sentia-se febril, aplicava-lhe uma dose, espaçada, de acônito - algumas gotas em meio copo d´água. O mesmo, com a beladona, para cefalalgia, etc.
Mas, em geral, as rezas supriam a ausência da medicina: contra dores de cabeça, de dente, da madre, etc., recorriam aos mestres no ofício - como ainda hoje... e pelo tempo adiante.”
No mesmo livro (pág.30) o autor mostra que: “Aqueles fazendeiros ... eram as figuras mais representativas da vida política e social do município constituindo um arremedo daquela aristocracia rural que então florescia noutras  regiões privilegiadas pela pujança econômica que a natureza lhes proporcionava. ...Confinados nas suas fazendolas, só apareciam na vila quando sorteados para as sessões do júri, ou nas eleições. ...Nas festas religiosas é que a maioria deles trazia a família. E era uma nota interessante a vinda daquelas caravanas - os homens enfatiotados, de botas, e as mulheres em trajes de amazona, de chapelina, ostentando as suas montarias (compridas saias  que lhes cobriam os pés — o direito firmado no estribo do silhão) acompanhados de moradores da fazenda e do cargueiro.
Terminadas as festas, lá voltaram para a luta da fazenda: no inverno,  a pega das vacas que davam cria pelos matos, a ferra dos bezerros mais tarde, o amansamento de burros e poldros já em tempo de se lhes correr a sela; no fim das águas, as "apartações" do gado de outras fazendas, que ali bebiam, quando os respectivos vaqueiros apareciam no dia determinado, a fim de conduzi-lo; e, na seca, o trato dos animais nos cercados, enquanto havia algum pasto murcho a roer, ou no corte do mandacaru, que era levado ao fogo, após o que o gado mastigava a polpa. Na zona do "espinho" (um pouco diferente da do "mimoso", em que os cactos e as bromeliáceas não eram abundantes), os vaqueiros ateavam fogo aos bancos de macambira; cujas batatas constituíam uma suculenta ração para o gado, queimando também os galhos do mandacaru, do xiquexique (ou "alastrado") que por aquelas catingas existiam em profusão.”
Já no livro “Um sertanejo e o sertão – memórias” (Rio – 1976, 2ª. edição) pág. 67, o mesmo autor revela mais sobre as refeições que fazia quando criança (final do século 19): “... além da coalhada, nas épocas de inverno, ou da umbuzada – quando os umbuzeiros estavam carregados de frutos (a safra do umbu – ou imbu – vai de janeiro até quase abril), o prato invariável, no almoço, era o xerém de milho, para dar melhor sabor à carne assada na grelha ou cozida na panela; no jantar, o feijão era obrigatório, com a farinha de mandioca; e à noite, na ceia, quando não se servia também a coalhada ou a umbuzada, dominava o munguzá (de milho) e o xerém com leite, ou o jerimum, também com leite.
O queijo de coalho e o de manteiga (de fogo) era abundante nos meses em que, no inverno, a vacaria enchia o curral. A buchada, servida no segundo dia após o sacrifício do carneiro ou do bode, era, como é ainda, a grande novidade nos almoços sertanejos. E a panelada, que aparecia quando se abatia uma rês. ... O xerém era feito do milho quebrado num “moinho” (uma pedra redonda, puxada por um torno, girando sobre outra); o milho do munguzá era desolhado no pilão, no qual também era pisado o café torrado.
Para refeições avulsas... a paçoca (carne pisada com farinha), o pirão de galo (com ovos) e a mal-assada, de ovos com a manteiga do leite da vaca. (O fubá de milho, adocicado com rapadura, era muito apreciado na fazenda, especialmente misturado com o leite).
Sobremesa (nem sempre): mel de rapadura ou de abelha, e, por vezes, de engenho, vindo de alguma engenhoca de Pajeú, município de Afogados da Ingazeira – ali próximo; e, às vezes, xerém com rapadura, ou rapadura com farinha. Frutas... nunca! Nesse particular, o descaso entre os sertanejos naquela região do Moxotó era absoluto. ... Os meninos – eu inclusive – recorriam às frutas silvestres, algumas saborosas: a quixaba, a pitomba, o umbu, o jatobá, o juá, o araçá.”
O “Diccionario Topographico, estatistico e historico da Provincia de Pernambuco" (Recife, 1863, páginas 117/118, disponível na web em http://tinyurl.com/3wmec75 ), de Manoel da Costa Honorato, mostra que Pernambuco produzia [1863!], entre outras coisas,”cana de açúcar (muitas espécies), milho, feijão, arroz, batata doce e aguada, inhame, café, couve, quiabo, jerimum, maxixe, coentro, tomate, cebolinha, alface, ananás, araçá, cajá, goiaba, caju, figo, uva, jaca, laranja, manga, abóbora de doce, amoreira da mata, araticum, bacupari, bamboré, batinga, camboim, camuçá, cruanha, cruiri, cupiúba, gargamba, giriquitá, gindiroba, guajeru, imbuzeiro, jaboticaba, mangabeira, mapurunga, marmelo do mato, maçaranduba, murta, oiti, oiti-coró, oiti-triba, perruxo, pitanga, pitiá, pitomba, pinha, sapoti, maracujá e uma infinidade de frutas que se torna enfadonho mencionar".
Como se vê nestes importantes relatos, depois destas centenas de anos já vividos pelos nossos ascendentes, a tradição dos usos e costumes do nosso povo se aperfeiçoa. Embasados na criação do gado, o ponto de partida da nossa colonização, temos a consciência daquele vigoroso ciclo que hoje se apresenta em nosso modo de ser, de viver.
A gastronomia sertaneja, as vaquejadas, nossos cantos e encantos são bem melhor compreendidos com esta exposição do passado.

Um exemplo de fazenda primitiva, no município da Pedra. A casa da Fazenda Riacho do Pau, edificada no século 19 por Francisco Salviano de Mello Lanta (www.lanta.myheritage.com ). A primeira foto foi tomada em 1982 e a outra é atual (novembro de 2011), revelando uma preservação daquela construção, berço de tradicional família pedrense. Este jornal já apresentou imagens da família no mesmo ambiente: https://bit.ly/3e37Wev

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