Higiene sertaneja
JORNAL DE ARCOVERDE n.295 – Janeiro/Fevereiro de 2017
Higiene sertaneja
Pedro Salviano Filho
Apesar
de incomum, o assunto ora abordado, não deixa de ser também inusitado na
história da nossa região, embora provocativo.
Como
eram os hábitos e costumes dos nossos desbravadores sertanejos no que concerne
aos cuidados de higiene?
Novamente,
recorremos a algumas bibliografias, jornais de época e vídeos para apresentar
respostas referendadas e com links
para estimular mais pesquisas pelos leitores e, talvez, novos historiadores.
1814 - No livro Elementos de Hygiene, da Academia de Ciências de Portugal. Seção I Cap V, pág 25
(48/383), goo.gl/wwE62x, entre
muitas curiosidades, ensina-se a necessidade da manutenção saudável das
evacuações intestinais: «Devem ter muito cuidado em ter
regulares as evacuações Malvinas, usando a ser preciso, de clisteres resolutos,
por ex. raiz de taraxaco, fragaria etc., em cozimento; no qual se infunde
camomila, arruda etc.»
Vídeos:
Passado a limpo. A história da higiene pessoal
no Brasil, goo.gl/gVxBmI , patrocinado pela Kimberly-Clark Brasil.
Interessante vídeo, baseado no livro de Eduardo Bueno, narrado por cantadores
de cordel.
Minha cidade, minha saudade. Recife, 1972 - Luiz Wilson, página
192
«Oliveira
Lima foi a Rio Branco em 1919, acompanhado do prof. Ulisses Pernambucano e de
mais 2 ou 3 amigos, num “automóvel de linha” especial. Nas noites em que
dormiu, na cidadezinha, Agostinho de Holanda (seu amigo e de sua esposa, dona
Flora, de Vitória de Santo Antão e do engenho Cachoeirinha), teve de arranjar
um estrado especial e montá-lo em 4 mochos. “Mestre” Fio deve ter trabalhado na
cama do conhecido historiador, dois ou três dias.
Um homem imenso, não sei como se
arranjou Oliveira Lima no Rio Branco de 1919, hospedado, embora, em uma boa
casa construída naquele ano ou no anterior. Até alguns anos passados, a grande
maioria dos “sanitários” de nossas casas era um quartinho, em meia água, nos
fundos de muros, onde não entraria, talvez, o historiador admirável. No tempo
em que eu era menino, uma das poucas residências de que eu me lembro, em Rio
Branco, que possuía “sanitário” dentro de casa, era a do Dr. Leonardo
Arcoverde. Um dia, o nosso velho e saudoso amigo revoltou-se com um matuto que
era seu parente e acabou, no “quartinho” do velho chalé, com um pacote inteiro
de papel-higiênico, que o dr. Leonardo comprava no Recife. -“Este tabaréu”,
dizia do dr. Leonardo à “comadre” Caró, “acostumado a se limpar com uma pedra, acabou com meu papel-higiênico! Que é
que eu vou fazer agora, Caró?».
Velhos e Grandes
Sertanejos, 1º vol. Recife, 1978 –
Luís Wilson. Pág. 361. Cap. 29:
«Augusto de Albuquerque
Cavalcanti (Cel. Augusto Cavalcanti)
[...] No mesmo prédio em
que ficava o "motor da luz” de Rio Branco, Augusto Cavalcanti tinha também
uma fábrica de angico ou de tanino. Lá atrás, com a frente voltada para o Rio
da Rua Velha (ou Riacho do Mel), 5 ou 6 banheiros que uma boa velhinha,
avó de Zé da Tapioca tomava conta. Eram, na realidade, os banheiros da cidadezinha e era ali ou em “seu” Jé que se tomava
banho. Rio Branco não tinha talvez, até 1925 ou 1927, 15 ou 20 casas com
“banheiro próprio”, e de qualquer modo a água era pouca e vinha de “seu” Jé nos jumentos de Bertino (que
trabalhava na residência do Cel. Antônio Japyassu) e, entre outros, nos de
Expedito e Zé Castigo.
A água boa, a água de
beber iam buscar na Serra das Varas, uma ou duas vezes por semana.»
Cronologia
pernambucana, 2014, Recife, Nelson Barbalho, página 189 - vol.19
3022
«O Diário de Pernambuco, de 05 de novembro de 1833,[referência não
confirmada em goo.gl/O9WliS ] na
seção de anúncios, dizia estar à venda, como novidade na Província, “um banheiro de folha de flandres”. Até
então mesmo entre as famílias mais finas da capital ou do interior, o banho
mais característico de todos era “o de
gamela e o de assento, dentro de casa. O banho de cuia”, como informa
Gilberto Freire (Sobrados e Mucambos, I, 196-197) [ goo.gl/7CMpzK ] que comenta e ensina: “Os anúncios dos jornais da primeira metade do século XIX estão cheios
de gamelas, aos pouco substituídas por tipos mais finos de banheiros. Para
gente de mais idade, o banho era sempre morno, inteiro ou de assento. Segundo
alguns viajantes dos tempos coloniais, -um deles Mawe [ goo.gl/zOgju3 ] - as senhoras dos sobrados abusavam do banho
morno; e isto concorria para amolentá-las”. Opinião, também, de alguns
higienistas do tempo do Império, que se ocuparam do assunto em teses e
dissertações.
Uma das gabolices de alguns sobrados ilustres era que deles
escorresse para a rua a água dos banho mornos. Água azulada pelo sabonete fino
e cheirando a aguardente de qualidade. Os fidalgos das “casas nobres” se
orgulhavam de não feder a negro nem pobre.
Deve-se notar que o sabão, a princípio fabricado em casa, foi um
dos artigos que se industrializaram mais depressa no Brasil. Sabão de lavar
roupa, branqueada também a anil. Sabão de esfregar o corpo da gente fina e
embelezá-lo ainda mais. Importava-se da Europa muito sabão de luxo. No século
XIX os negros mais ricos deram para importar sabão da Costa. Um consumo enorme
de sabão. A tal ponto que no meado do século XIX, grande parte das fábricas do
Império era de sabão.
Quanto à gente dos mocambos, é claro que entre ela o luxo do sabão
não se desenvolveu. Nem entre ela nem entre a metralhada das senzalas. O budum,
a catinga, a inhaca, o “cheiro de bode” dos negros, em torno da qual cresceu todo
um ramo de folclore, no Brasil, deve ter sido o exagero do cheiro de raça, tão
forte nos sovacos, pela falta, não tanto de banho, como de sabão, em gente
obrigada aos mais duros trabalhos.
Porque de banho, o negro, a gente do povo mulata, e não apenas a
mameluca e a cabocla, nunca se mostraram inimigos no Brasil. A tradição de
excessivo gosto da água de bica, em regalos de banho ou pelo menos de lava-pés,
não se encontra só no Norte; também no Centro e no próprio Sul do País. O
moleque brasileiro tornou-se célebre pelo seu gosto de banho de rio. Os jornais
da primeira metade do século XIX e até da segunda estão cheios de reclamações
contra moleques sem-vergonha, e mesmo homens feitos, que, nos lugares mais
públicos, ou ao pé dos sobrados mais nobres, despiam-se de seus molambos, de
seus trapos de estopa ou de baeta, e iam tomar banho completamente nus”.
Assunto a que voltaremos a nos referir em capítulo seguinte.
Pelo Agreste e pelo Sertão, o banho preferido de todos era o de
rio. Só se tomava banho em casa quando se estava doente. Geralmente, nos rios,
havia lugares destinados aos homens e outros destinados às mulheres.
Gostava-se, também, e mito, do banho de choque, que diziam se “excelente para
os nervos”, e do banho de bica, geralmente tomado pela manhã, pelos homens,
que, “para evitar refluxo”, banhavam-se chupando cajus ou laranjas e tomando
cachaça. Na época dizia-se que sabão de negro ou de pobre em “caco de telha”,
usado para tirar a sujeira grossa do couro. Mulher fina, para evitar olhares
indiscretos ou maliciosos de certos homens que se escondem atrás de toupeiras
de mato para vê-la banhando-se no rio, muitas vezes em casa, geralmente no
quintal, tomava banho de alguidar de barro, usando sabonete importado da Europa
e “água-de-cheiro”. Banho de mulher-dama sempre era tomado às escâncaras,
impudicamente.
Nas casas agrestino-sertanejas não havia banheiros nem gabinetes
sanitários. Via de regra, defecava-se no mato, “por trás das bananeiras” cuja
folhas às vezes eram utilizadas para o asseio anal. Também na cidade, segundo
Gilberto Freire (Ob.Cit.I, 198),
“… o grosso do pessoal defecava no mato, nas praias, no fundo dos
quintais, ao pé dos muros e até nas praças. Lugares que estavam sempre melados
de excremento ainda fresco. Luccock diz: “thickly
strewed with ever fresh abominatios”. Isso sem falarmos da urina,
generalizado como era o costume dos homens de urinarem nas ruas; e de nas ruas
se jogar a urina choca das casas ou dos sobrados sem quintal. A 03 de março de
1835, apareceu no Diário do Rio de Janeiro,[referência não confirmada em goo.gl/uGdE8Y] esta reclamação típica: “Já há tempos que se
roga aos vizinhos que ficam na Igreja de s. Jorge, da parte da Rua da Moeda,
que houvessem de não deitar na rua, à noite, águas imundas e urinas chocas, e
que ainda continuam; portanto por este anúncio se torna a rogar, prevenindo de
que se tornarem a continuar se representará ao juiz competente, pois que basta
a estação em que estamos de grande calor e ainda sofrer dos mais vizinhos
semelhante mal pestífero saúde dos mesmos”.
O hábito de defecar de cócoras, à maneira dos índios, de tal modo
se generalizou não só entre a gente rural como entre a população mais pobre das
cidades, que ainda hoje há brasileiros distintos, de origem rural, ou então
humildes, incapazes de se sentarem nos vasos sanitários; só acham jeito de
defecar pondo-se de cócoras sobre a tampa do W.C., que às vezes deixam toda
emporcalhada. Daí serem tão raros, no Brasil, os W.C públicos limpos ou
asseados. Mesmo em algumas casas de família, nas cidades já saneadas, não se
concebe que os W.C. possam ser lugares limpos, inteiramente diversos dos seus
predecessores; as “casinhas” com simples barris sem o fundo enterrados até o
meio sobre uma fossa. O uso desses barris, em “casinhas” distantes do sobrado
ou da casa, generalizou-se nas casas suburbanas da segunda metade do século
XIX.
Nas aldeias públicas do Agreste e do Sertão, os presos “se
aliviavam”, isto é, defecavam e urinavam em barris denominados de “cuba”, os
quais ficavam cheios durante o dia e, à noite, eram conduzidos pelos presos
pobres para os matos ou para beira do rio, onde se fazia o despejo das fezes e
urinas, retornando a “cuba”, com catinga e tudo, para servir de “sanitário” da
cadeia no dia seguinte.»
«WATER-CLOSET
Papel higiênico e medicinal para
water-closet. Este papel é perfeitamente puro e adequado ao fim que se destina.
É sabido que em grande parte as moléstias hemorroidárias são devidas ao uso do
papel ordinário, sobretudo do branco que, além da impressão com tintas oleosas
e ácidas, contem geralmente substâncias nocivas, como sejam: o vitríolo, cal,
potassa etc., que se empregam para branquear o papel. O presente papel é o
único até agora feito que preenche as qualidades de pureza necessárias, é macio
e se dissolve facilmente na água, de sorte que não há perigo de entupir os
canos do esgoto, como acontece com outros papéis de qualidade ordinária.»
Diario de Pernambuco, 17-07-1921,
4ª col. goo.gl/tzvNF2 . Descarte de papel na descarga - Salubridade das habitações
«Salubridade
das habitações
A Repartição de obras públicas, algas e
esgotos pede-nos a divulgação do seguinte:
"A obstrução da canalização de
esgotos deve ser evitada de um modo sistemático; e, com os novos serviços, a
obstrução é sempre evitável, salvo os casos de coagulação da gordura aderente à
superfície interior das canalizações, quando ela se dê independentemente dos
cuidados recomendados.
O uso do papel higiênico se deve generalizar,
e os papéis servidos devem ser lançados à latrina, para serem removidos com as
descargas das respectivas caixas de lavagem, sem o menor receio de que causem
obstrução. O uso de papéis de outra natureza, e, porém, condenado pela higiene
e é proibido lançá-los nos aparelhos. Deixar os papéis servidos, de qualquer
natureza, em caixões, em cestos, expostos às moscas, que neles pousam e deles
voam para pousarem nos alimentos é uma prática condenada pela higiene e só um
qualificativo merece, tão expressivo que desnecessário se faz repeti-lo. Lançar
no esgoto trapos, lixo, terras, cinzas, resíduos de alimentos crus e cozidos,
pós de café, e outras substâncias estranhas ao serviço dos esgotos, são
práticas que se não podem mais justificar pela ignorância; elas resultam
geralmente do desleixo. A "Dona de casa" não se pode eximir da
responsabilidade pelo asseio da habitação e pela boa manutenção do serviço
sanitário; a falta de assistência doméstica é evidente na maioria dos casos,
mas, como justificação do que se observa de irregular, alega-se a ignorância e
o desleixo dos criados. Uma parcela do tempo que sobra para a vida mundana
deveria ser mais vantajosamente empregada nos cuidados da vida doméstica, para
felicidade hígida do lar; com o bom exemplo, vindo do alto, os criados seriam
cuidadosos e as crianças se educariam na prática dos princípios sãos, tão úteis
para o seu futuro adulto e tão necessário à comunhão social. Bem escreve
Agostinho de Campos: - "Casa de pais, escola de filhos". O mestre
deve ser o continuador na prática destes bons princípios trazidos do lar, de
entre eles a higiene; estes princípios devem ser então desenvolvidos na escola,
singelamente, evitando-se definições pedantes da didática moderna. Não é por
meio de livros decorados e repetidas, enfadonhas para crianças, talvez
contraproducentes, não é com esse método de ensino que se formarão mulheres e
homens asseados, sadios, virtuosos, inteligentes e úteis à família. O esgoto de
uma casa é comparável ao intestino do organismo animal: o médico, ao tratar um
doente, cuida logo do desembaraço intestinal; é preciso também, em certos
casos, indagar do funcionamento intestinal do prédio. A casa doentia faz os
moradores doentes, e não há drogas que curem estes sem que seja aquela
previamente curada, isto é, saneada. Para sanar um prédio não basta que se lhe
deem água potável e esgotos perfeitos. A muitas outras condições atender, e de
entre elas citamos apenas a boa iluminação solar e a ventilação natural, em
todos os compartimentos e especialmente nos de dormida, nos de trabalhos
diurnos e nos gabinetes sanitários. Se isto não se puder conseguir nos
estreitos e compridos prédios antigos, de vários pavimentos, infestados de
alcovas - esses prédios devem ser condenados por insalubridade: - são casas
assassinas, no dizer do eminente arquiteto francês. - Recife, outubro de 1916.
- S.R. de Britto; »
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